sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Vemos o que queremos ver

A visão é uma experiência dinâmica e está longe de ser uma mera recepção de estímulos. A memória é igualmente dinâmica e a sua relação com a visão é um campo de estudos muito abordado. O clássico teste de Rorschach é apenas um exemplo dos métodos que estudam esta relação fluida entre visão, memória e interpretação.


Um dos borrões utilizados no teste de Rorschach

Eu, que gosto tanto de provérbios e de senso comum enlatado em frases curtas e rimas, lembro-me, a  propósito da Visão, de dois dizeres populares. Um, refere o facto da posse de visão numa monarquia de cegos permitir o acesso ao lugar de rei. O outro declara que o pior tipo de deficiência visual é o desejo de não ver. A história de William Mumler e da sua fotografia de espíritos (ver O Fantasma de Lincoln, de 21 de Fevereiro de 2010) parece funcionar como uma boa ilustração dos referidos ditados. Com uma pequena nuance, direi. A de não se verificar o desejo de não ver, mas sim o seu oposto: a vontade de ver.


Quanto ao primeiro provérbio, a conexão é óbvia. Mumler detinha poder, que atingiu com a posse dum saber muito restrito - o domínio da técnica fotográfica. Abusou deste poder, aproveitando-se da ignorância e da ingenuidade alheias para obter vantagem material, a dez dólares por sessão no auge da sua fama. Lendo-se as cartas enviadas na altura do seu julgamento à imprensa, e os relatos deste, consegue-se depreender que Mumler estava longe de ser um pequeno e manhoso aldrabão. Revelava uma maestria significativa na manipulação de materiais fotográficos. Os contornos da sua técnica de falsificação nunca foram determinados de forma exacta e flagrante pelos seus contemporâneos e, há que dizê-lo, não faltaram oportunidades. Pelo menos por duas vezes, uma relatada em tribunal, e outra descrita numa missiva dirigida a um jornal, William Mumler realizou as suas fotos perante a vigilância apertada de fotógrafos. Numa delas, fê-las num estúdio alheio, com os materiais lá existentes. Mesmo entre os seus pares, via mais além. Na sua autobiografia, chega a invocar determinados fenómenos físicos, como a irisdiscência, demonstrando que navegara entre literatura científica para tentar obter credibilidade. Outro pormenor interessante é que quanto ao acto em si, a captura de imagens de espíritos, Mumler, como um bom mafioso relativamente aos seus crimes, falava pouco. Ao contrário da esposa, não invocou o estatuto de vidente. Descrevia-se a si tão-somente como um meio através do qual os desaparecidos se revelavam.


Relativamente ao segundo adágio, e à sua distorção no sentido que referi, basta-nos olhar para as fotografias. Mumler não foi provavelmente o primeiro a declarar fotografar fantasmas. E não foi definitivamente o último. Basta fazer uma pequena pesquisa na internet para verificar a quantidade de gente que ainda por ai anda nesta actividade. Tampouco foi o único a tribunal, acusado desta burla.
Algumas coisas fazem porém destacar o seu caso. Uma, como já disse, é sua competência técnica e auto-confiança, que lhe permitem submeter-se voluntariamente à fiscalização de outros fotógrafos e escapar. Outra, é a forma como se destaca das tentativas coevas de registar a imagem de espíritos. As imagens de Mumler não parecem sair de um catálogo de lençóis e cortinas, são figuras humanas. As suas fotografias não são teatrais. Não há nelas, salvo raras excepções, gestos dramáticos e poses exageradas. Pelo contrário tendem a ser formalmente muito simples, num fundo neutro. Tendem a ter um carácter intimista. A singularidade de Mumler prende-se com o facto de se ter apercebido de uma possibilidade técnica e de ter tido a intuição de procurar as soluções visuais certas, afastando-se de um imaginário herdado da pintura clássica e romântica, e do teatro.
























Frederick A. Hudson, Fotografia de mulher com um espírito
























Henri Robin,Um espírito,1863

Um último aspecto, que será eventualmente o fulcral, prende-se com o carácter ambíguo e indefinido das formas com “retrata” os espíritos. Sobretudo nas suas fotografias tardias, depois de ter apurado a prática e ter definido o grau de risco a correr, a maioria das imagens da sua clientela anónima não tem características nítidas. Mumler deixa o campo aberto para o cliente construir a sua percepção e reconstruir a sua memória procurando, no mínimo aspecto da figura, semelhanças com o ente desaparecido. Um contemporâneo, referindo a uma cliente de William Mumler, escreve que, para uma mulher destroçada pela morte da filha, a visão vaga de uma criança com um vestido é suficiente para reconhecer a filha perdida na imagem.


William Mumler, fotografia do Capitão Montgomery com um espírito feminino,1870s

William Mumler, Fotografia de  Moses A. Dow com o fantasma da sua protegida Mabel Warren,1870's

Nas fotografias de Mumler, nos borrões do teste de Rorschach e em muitas outras coisas, vemos aquilo que queremos ver, ou melhor, o que estamos preparados para ver.

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1 comentário:

  1. Vemos o que queremos e estamos preparados para ver, é um aspecto fundamental da comunicação humana e por isso às vezes faz tanto ruído. Penso, no entanto, e relativamente ao primeiro adágio e tal como Saramago provou, em terra de cegos ter olho conduz, de certo modo, à infelicidade. Em relação ao segundo, por vezes é bem melhor não ver...

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