sexta-feira, 22 de outubro de 2010

SPECIMEN - O Carrapato

Existe uma espécie de lei natural que impele os miúdos pequenos a evitar qualquer troço de calçada ou de piso alcatroado, optando por terreiros enlameados e matagais. É assim hoje, com os meus rebentos, era assim nos anos setenta, quando eu era um rebento, e só não era assim no tempo dos Neanderthais porque estes ainda não se dedicavam à grande e nobre arte portuguesa de fazer estrada.
Existe igualmente uma lei universal, e perene, que leva os pais a importunarem os petizes por comportamentos tão pouco lógicos e asseados. Comportamentos que, a seu tempo, estes aprendem a negar ter tido (os famosos “ Eu? Eu não! … Eu não andei na lama” ou “ Não tive culpa, empurraram!”). Mas o dom de ocultar factos leva tempo a apurar, e nem todos chegamos à mestria. Os adultos apanham-nos pelos indícios, a lama salpicada nas costas, as palhas agarradas à roupa, a areia transportada dentro dos sapatos.
Quando era miúdo um dos sinais mais bufos das minhas escapadas por atalhos cheios de ervas era o Carrapato. Espécie de coroa minúscula de espinhos, existe aos milhares e agarra-se à roupa como uma carraça (daí lhe vem o nome). Para meu infortúnio, funcionava melhor, muito melhor, com os tecidos sintéticos baratos que abundavam na época em que o país se entretia, e exaltava, com palavras fabulosas como reaccionário, neocolonialismo, proletariado e imperialismo. Por mais que os retirasse das meias, das calças e das camisolas, havia sempre alguns que escapavam.

Assim, já sabia quem era culpado quando, ao chegar a casa, a minha mãe me recebia com um “ Mas por onde é que tu andaste?...”. Era o carrapato.

Júlio Assis Ribeiro, SP_V_CRRPT_01 - Carrapato, 2006

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