segunda-feira, 11 de outubro de 2010

SPECIMEN - Passer domesticus

Num tempo em que até Lisboa era pontuada por quintas e terrenos com mato, e em que não se sonhava com Playstations e Xboxes ( alguns afortunados almejavam uma coisa a que pomposamente chamávamos computador - o seu nome verdadeiro era Spectrum- e que era um objecto que se ligava a uma televisão e a um gravador de cassetes, durante meia hora, para carregar uma coisa a que pomposamente chamávamos jogo, e que quase invariavelmente dava erro durante o carregamento), a miudagem praticava toda uma variedade de actividades de exterior.

De entre estas, uma era dominada pela passarada. Dominada salvo seja. A moçanhada perseguia, apanhava, aprisionava e matava a passarada das mais estranhas às mais banais formas. Havia uma mistura de crueldade infantil com o mesmo primevo entusiasmo predatório que leva anafados cidadãos a madrugar em dias de inverno, os arrasta para a lama e o frio a léguas de casa, e os faz regressar noite caída com um minúsculo e esquelético coelho.

À sua escala, a maltinha caçava impiedosamente. Com fisga e pressão-de-ar, com esparrela (pequena armadilha de arame com mola, parecida aos engenhos de caçar ursos e outra caça grossa) e com visgo ( cola semelhante à de sapateiro, que barrada em ramos prendia pelas penas os incautos bichos que tinham a infeliz ideia de ali pousar). Faziam-se esperas junto a bebedouros naturais ou a outros que eram feitos de propósito, construíam-se abrigos para dissimular os caçadores e aguentava-se horas se preciso. Usavam-se chamarizes, pássaros judas que presos em gaiolas atraiam os semelhantes a uma triste sorte.

Durante anos, até ser arrebatado por uma súbita consciência ecológica e por um desvio de interesses ( aos catorze ou quinze anos começa-se a encontrar outras belezas bem mais interessantes que a das aves canoras), madruguei e com outros percorri quilómetros de bicicleta, e dediquei-me à arte de armar ao pássaro. Encontrado um local promissor, montava-se uma armadilha de rede que era accionada puxando uma corda.

Ansiava-se apanhar pintassilgos, bicos-de-lacre ou pintarroxos, variedades vistosas que suportam gaiola e eram apreciadas pelos mais velhos. Mas a maior parte das vezes calhavam-nos apenas pardais, que apesar do nome científico passer domesticus, são demasiado cientes da liberdade, canas rachadas que não se alimentam e definham até à morte em cativeiro. O destino natural desses pardais era a companhia do azeite e do alho numa frigideira, petisco algarvio a que eu não era particularmente atreito. Por isso, quando armava sozinho libertava-os e regressava das caçadas de mãos a abanar.

Depois concluí que gostava mais de percorrer as estradas que acompanham as ribeiras do que de esperar por pássaros que não fazia questão de comer, e que gostava muito mais de os ver ao longe do que de limpar diariamente gaiolas, e desfiz-me da rede de armar.

Mas ainda dou por mim a seguir com os olhos estes pequenos dinossauros de penas que todas as noites fazem um tremendo escagaçal nas árvores junto à minha casa. Como um gato velho a olhar da janela os pardais.

 
Júlio Assis Ribeiro, SP_A_PRDL_01 - Pardal ( Passer domesticus), 2005

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