sábado, 30 de julho de 2011

Os afloramentos do Mal

Vivemos, de certa forma, uma existência plastificada no chamado primeiro mundo. Somos protegidos e afastados de infecções, malnutrição e arbitrariedade militar. A morte entra-nos raramente pelo quotidiano e o Mal é-nos maioritariamente longínquo, desenrola-se em cenários selvagens e agrestes que não visitamos.
Por isso, quando de súbito somos informados de um afloramento do Mal num contexto mais próximo sentimo-nos profundamente afectados. Toponímias antes desconhecidas gravam-se para sempre na memória – Srebrenica, Columbine e agora Utoya. 
O inesperado do facto retém-nos o acontecimento, o local. Choca-nos o acontecido, é-nos intolerável(estranhamente, quando lidamos apenas com vago interesse, diariamente e nos noticiários, com nomes como Goma, Nyange, Sulawesi, Homs). Indignamo-nos por ninguém ter visto que aconteceria aquilo que ninguém espera. Esforçamo-nos para encontrar os sinais de que era óbvio o mal que tentava irromper. Não raramente, descobrimos que os súbitos agentes do mal são seres preocupados com a sua imagem, são construtores da sua representação. Registam-se em vídeos e fotografias, escrevem manifestos e ameaças.
Insatifaz-nos esta estranha evidência: os vídeos premonitórios, os manifestos coléricos, os sinais óbvios de um mal que irrompe são boçais, e não se distinguem do ruído imenso da estupidez humana. A estupidez é um facto da vida, que não controlamos, que aprendemos a tolerar. E é, de uma maneira geral, relativamente inconsequente.
Este adormecimento, e a ideia de que tudo está controlado entre nós, permitem a facilidade com que pontuais explosões de violência extrema e arbitrária se desenrolam.
Tanto quanto as mortes e a dor resultante, o que nos dói é a súbita consciência de que não controlamos, ou não sabemos controlar, o mal que se pensa erradicado pela Educação, pelo condicionamento social, pela Razão.
O olhar indignado sobre as provas que anunciam o horror acontecido é o reflexo do sentimento de impotência advindo daquilo que não controlamos. Olhando-se para a fotografia de cadastro policial do jovem Benito Mussolini, feita na suíça em 1903, o nosso olhar tenderá a ver aquilo que sabemos. Registado premonitoriamente como um criminoso, está ali o homem que porá os comboios a chegar a horas em Itália, e que levará à morte cerca de meio milhão de etíopes. O homem que bombardeará populações com armas químicas e que acabará morto e profanado, pendurado pelos pés, com os seus companheiros de fuga e de morte, num posto de combustíveis em Milão. Vemos na imagem os sinais dos crimes posteriores do ditador. Mas em rigor, o que foi fotografado em Berna, em 1903, é um jovem de 19 anos, filho dum alcoólico e de uma professora primária, que fugira ao serviço militar em Itália, trabalhando ilegalmente como pedreiro na Suíça de onde será deportado.


Autor não determinado, Benito Mussolini, Berna, Suiça, 1903
imagem obtida aqui


Os vídeos que vemos dos perpetradores de crimes insanos, as fotografias que eles encenam, os escritos ameaçadores que publicam, são sinais de uma patologia subjacente. Mas não sabemos hoje verdadeiramente o que transforma um sujeito, entre a multidão que dispara impropérios ao mundo, num assassino real, tal como não se sabia nos inícios de novecentos que, de entre os milhares de agitadores políticos europeus, aquele jovem preso em Berna se destacaria levando o seu país a um devaneio megalómano e violento. A indignação que nos atinge depois de Utoya, de Columbine e outros acontecimentos análogos rompe o adormecimento, aumenta a vigília, alerta, apura os mecanismos que analisam as ameaças. Porém, sobre estes efeitos paira uma sombra, a ideia de se saber que por muito apurados que estejam os procedimentos preventivos, quase certamente e em última instância, não conseguiremos evitar que o Mal aflore abruptamente rasgando a protecção plastificada da vida ocidental.

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