quarta-feira, 30 de novembro de 2011

O presidiário 4100

Foi relativamente rápida a absorção da Fotografia, enquanto ferramenta, pela burocracia. Se, no início, as limitações técnicas do daguerreótipo e do calótipo inviabilizavam um uso corrente, com o aparecimento e a expansão do processo do colódio húmido a situação altera-se. A título de exemplo, e usando dois casos já aqui abordados neste blog, o corpo de engenharia do exército britânico ( os Royal Engineers) inicia na década de sessenta de oitocentos uma secção fotográfica (cuja formação inicial esteve a cargo de um civil, Charles Thurston Thompson, o fotógrafo oficial do South Kensington Museum), em que as missões iniciais eram sobretudo de carácter burocrático, centradas na reprodução de documentos. O South Kensington Museum é outro caso em a fotografia é convocada de forma pioneira para o registo e catalogação, tendo o referido Charles Thurston Thompson realizado cerca de 10.000 fotografias com esse fim.
A voragem da Burocracia, máquina autofágica e em constante expansão, e um determinado espírito científico positivista (que acreditava que registando tudo, tudo poderia ser explicado e controlado) faria que os aparelhos judicial, policial e médico, começassem a apreciar a possibilidade de cadastrar sistematicamente os seus objectos de trabalho - réus, suspeitos, doentes, dementes, cidadãos nas franjas da normalidade.
Estas fotografias instrumentais, produtos de uma rotina de registo, acabam por funcionar como pequenas máquinas do tempo. Transportam-nos para a sua época, revelam-nos a radical diferença entre o conceito de normalidade do presente e o desse passado, apesar de tudo, relativamente próximo.

É muito comum a referência ao aparecimento de uma cultura adolescente no pós segunda guerra mundial. Previamente a esse facto, a transição entre a infância e a idade adulta não comportava um hiato, uma espécie de limbo mais ou menos longo, entre estes dois estágios de da existência. A passagem de um estado para o outro era, de certa forma, abrupta. Em certas cultura, o momento era (e é ainda, nalguns casos) marcado por um ritual de iniciação ou um outro acto de natureza simbólica- Na Africa do sul, entre os zulus e os Xhosa, a circuncisão dos jovens marca esse momento; noutros lugares, entre outros povos, uma festa promovida pelos parentes marca o momento em que se transita para a esfera dos adultos (caso dos judeus, com o Bar Mitzvah).
Menos abordada é, no entanto, a questão do estreitamento da faixa etária entendida por infância. A infância era historicamente uma fase pouco valorizada no Ocidente. Por um lado, a elevada mortalidade infantil e a elevada natalidade ajudam a explicar o relativamente reduzido investimento que se parece poder depreender da análise de fontes anteriores ao século XIX. Por outro lado, as difíceis condições de vida impunham aos sobreviventes da infância a rápida assumpção de responsabilidades hoje consideradas próprias de adultos, fossem as de simplesmente prover ao sustento familiar, fossem até as de iniciar uma carreira militar.
A inimputabilidade das crianças, a fase não responsável, estava longe de ser estendida aos actuais dezasseis anos, a fronteira legalmente definida na maior parte dos países ocidentais. O culto da infância, período mágico e lugar da inocência, começa a definir-se no século dezanove, e faz-se de forma claramente dual. A proliferação de romances e peças teatrais com heróis infantis que se verifica nesse século, contrasta com a atitude maioritariamente indiferente perante a exploração do trabalho infantil, o abuso físico e inexistência de cuidados dedicados. O fascínio burguês do século dezanove pelas crianças é eminentemente literário e classista. O direito à infância é estabelecido então apenas para as crianças de origens abastadas. Às outras estava-lhes destinado, sem escândalo, o trabalho, a ignorância e a dificuldade. Um exemplo: enquanto a burguesia inglesa e internacional percorria embasbacada o Palácio de Cristal, na Grande Exposição de Londres, em 1851, um pequeno exército de crianças percorria acocorado, por baixo, o espaço exíguo existente entre o soalho e solo, apanhando as beatas e os detritos, para prevenir incêndios e infestações.

Autor não identificado, George Davey, Londres, 1872
imagem obtida aqui


A fotografia de George Davey, de 1872, transporta-nos de forma dura para essa realidade. O sistema penal britânico, por aquela altura, evoluira já bastante relativamente ao século anterior, altura em que, para qualquer crime, a pena se resumia à forca ( ou à alternativa deportação para as colónias, nos casos de crimes que não envolvessem morte). Porém, para os padrões actuais, apresentava ainda punições particularmente pesadas, e a imputabilidade dos réus parecia quase não ter limites. Davey, um miúdo de dez anos, roubou dois coelhos. Apanhado e presente a tribunal, acabou condenado a um mês de trabalhos forçados. 
Pena que cumpriria na prisão de Wandsworth, um estabelecimento que começara em 1851 por ser um edifício modelo, construído segundo os princípios da panóptica, com 400 celas individuais dotadas de instalações sanitárias. Quando George Davey é condenado, já a situação se alterara radicalmente. As latrinas haviam sido removidas das celas para ganhar espaço extra para uma população prisional que não parava de aumentar. O miúdo seria fotografado para registo com o número 4100.
O tratamento dado a Davey estava longe de ser excepcional, quer na pena quer na idade da vítima. Observando-se os documentos dos National Archives, da Grã-Bretanha, verifica-se que crianças mais novas ainda eram sujeitas a prisão repetidas vezes pelo crime de vagabundagem ( não ter lar era uma malfeitoria grave) , que a chicotada antecedia por vezes os trabalhos forçados e que à prisão se seguia amiúde o reformatório, instituição tenebrosa e livre de decisão judicial. Oliver Twist de Charles Dickens não é, de todo, uma obra fantasiosa.
Abstraindo-nos um pouco do contexto, e centrando-nos na imagem, impressiona o rosto de George Davey. Uma face que parece evidenciar muito mais que os dez anos que tinha no momento do retrato. Impressiona igualmente a expressão triste do rapaz. Lembra o esgar recorrente de Buster Keaton, o actor de cinema mudo americano (em Portugal e Espanha chamavam-lhe Pamplinas), cujas personagens sofriam todas as desgraças com uma desolação impassivel. Desconheço o resto da biografia de George Davey, mas ao Pamplinas nada corria bem.

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