segunda-feira, 2 de abril de 2012

Encolhidos


Neal Slavin, livro "Portugal",
edição Lustrum Press, 1971








É belissima a imagem que Neal Slavin usou na capa de “Portugal”, o livro que publicou em 1971, em edição da Lustrum Press. É belíssima, estranha e misteriosa.
Uma menina de gorro sorri-nos ligeira e serenamente, quase como Gioconda, a partir de um interior. Um acaso da moda de então faz com que a configuração do gorro acentue o caracter orientalizante da janela de cantaria, através da qual ela nos sorri. A capa de um livro chamado Portugal, geograficamente o mais ocidental país europeu, apresenta-nos assim uma fotografia que remete para um Levante indefinido.
Depois, a imagem atinge-nos por uma óbvia incongruência de escala, a criança e a arquitectura contradizem-se. Num primeiro momento, parece-nos uma menina que olha através de uma janela pequena, mas observando-se com atenção a altura da criança desdiz essa impressão. Os edifícios são feitos para gente grande e a altura do parapeito das janelas, mesmo das janelas pequenas, é pensada para o seu uso. Debatemo-nos então entre a possibilidade de uma criança que subitamente foi ampliada, qual Alice no País das Maravilhas, e a de uma criança normal retida num edifício de pedra e cal em terra de gente liliputiana.


Neal Slavin, Portugal dos Pequenitos, 1968
imagem obtida aqui




Neal Slavin, Portugal dos Pequenitos (pormenor), 1968
imagem obtida aqui




Para um português atento e perspicaz, a estranheza da imagem é varrida por uma explicação bem prosaica. A menina de estatura corrente encontra-se dentro dum edifício real de escala diminuta, em Coimbra. A imagem foi captada no estranho parque temático do “Portugal dos Pequenitos”.
Inaugurado em 1940, no mesmo ano em que o regime salazarista, apesar da Europa mergulhada na guerra, se apresenta na sua grande “Exposição do Mundo Português”  em dupla comemoração dos centenários da independência e da restauração da independência, este parque faz com o grande evento um estranho contraponto. Não em termos ideológicos (Bissaya Barreto, o encomendador do parque era uma figura com responsabilidades oficiais) ou filosóficos ( ambos ilustram o isolamento voluntário que Estado Novo toma como estratégia, um auto-centramento nas “virtudes” nacionais), mas ao nível da durabilidade, da função e da dimensão.
O Portugal dos pequenitos propunha-se educar pela brincadeira (propósito alienígena no contexto da doutrina educativa salazarista) introduzindo as crianças nas arquitecturas tradicionais e populares (ou pelo menos naquilo que algumas elites consideravam como tal), nos grandes valores monumentais nacionais e na representação dos feitos do Império. Tudo isto era feito através da replicação de modelos arquitectónicos em edifícios de escala reduzida aproximadamente a metade, que forneciam uma experiência lúdica e pedagógica. Os projectos ficaram estranhamente a cargo de Cassiano Branco, arquitecto maior do primeiro modernismo português, mas figura politicamente incómoda para o regime, que o afastara totalmente da “Exposição do Mundo Português”, onde outros nomes fariam um ilusório universo monumental, propagandístico e provisório, com muito, muito gesso, numa estética de afinidades totalitárias. E Cassiano Branco desenha com enorme seriedade uma paródia perene ( involuntária?) à corrente da chamada “casa portuguesa” e aos marcos do Império Português para um parque que tinha por objectivo ensinar aos pequenos portugueses como era Portugal.
A fotografia de Neal Slavin, fosse ela uma imagem guardada num álbum fotográfico familiar, seria uma dessas obras-primas acidentais (dir-se-ia estatísticas) que são encontradas em feiras de velharias, que retratam com enorme felicidade estética momentos vulgares e insignificantes. Mas não o é. Trata-se duma fotografia tirada por um jovem americano a braços com trabalho de campo em Conímbriga, afrontado com a estranheza duma terra que lhe era alheia e que, na cidade universitária mais próxima, encontra um local que nuns poucos metros quadrados se propunha explicar tudo - com um país e um império encolhidos como se tivessem ido à máquina de lavar no programa errado. Tal como acontece aos nacionais, as casas de alvenaria daquele Portugal explicado aos pequeninos, por si só, decerto não terão esclarecido em nada Neal Slavin acerca da real  natureza do país. Mas proporcionaram-lhe uma oportunidade fabulosa de apresentar o mistério de um país obcecado com as suas representações.

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