quinta-feira, 26 de abril de 2012

O sorriso de Manuel Ferreira


Insisto no retrato de Manuel Ferreira.
Em 18 de junho de 1916, Lewis Hine, o fotógrafo do National Child Labor Committee, dirigiu-se ao King Philip Settlement (uma instituição de base voluntária que garantia educação a crianças e jovens de comunidades desfavorecidas) de Fall River, nos Estados Unidos, e realizou várias fotografias, algumas de grupos e outras de retrato individual.

Lewis Hine, 
Aula do curso de entalhador do King Phillip Settlement,
Fall River, Massachusetts, E.U.A.
18 de junho de 1916
imagem obtida aqui


Uma das imagens de grupo apresenta-nos os alunos do curso de entalhador que funcionava aos domingos, dia de descanso nas fábricas, onde, entre os vários miúdos imigrantes presentes, se encontra Manuel Ferreira. O rapaz de quinze anos é igualmente fotografado por Hine em retrato isolado, onde confronta a câmara em pose direita, com um sorriso contido mas confiante. A imagem furta-se aos estereótipos, não há nela a exposição da vítima que se poderia esperar de um fotógrafo empenhado na denúncia do trabalho infantil, nem o fascínio pictorialista pelo personagem tipo, nem ainda o lado “pobrete mas alegrete” tão caro a certa mentalidade e a certa Fotografia.

Lewis Hine, Manuel Ferreira,
Fall River, Massachusetts, E.U.A.
18 de junho de 1916
imagem obtida aqui


Manuel, nas suas roupas domingueiras, lida com a câmara em aparente auto-satisfação, formal mas não rígido, quase em pose de Homem de Estado.
Hine, que não era um fotógrafo de instantâneos, mas que não era decerto também um encenador tout-court, era estruturalmente um documentarista e não terá aqui desejado fazer alegorias ou metáforas. Há na imagem uma verdade, um contentamento estranho para quem trabalhava numa siderurgia seis dias por semana. Há em Manuel um sentido de vitória ao ser fotografado na escola onde se dirigia aos domingos com as suas melhores roupas.
Ser pobre e desfavorecido nos Estados Unidos do início do século vinte era, apesar de tudo, muito diferente de ter essa mesma condição em Portugal, ou em outros países do velho mundo. Socorro-me agora de uma fotografia algo posterior à de Hine.

Em 1940, Bernard Hoffman, fotógrafo da revista americana LIFE, deslocou-se a Portugal para realizar uma reportagem. O ano não é de todo irrelevante. A Europa encontrava-se em guerra, os Estados Unidos procuravam isolar-se do conflito (apesar do entendimento de Roosevelt de que a entrada americana seria apenas uma questão de tempo) e o regime português realizava o seu grande evento de propaganda e comemoração- a Exposição do Mundo Português.
O artigo sairá na edição de 29 de Julho desse ano, e fará acompanhar a reportagem fotográfica de quatro textos. Um versará sobre a vida pacata da aristocracia, outro sobre o vinho do Porto, e os dois restantes, bem mais interessantes para nós, tratarão da particular situação geopolítica do país. Os textos faziam-se acompanhar de uma colecção de lugares-comuns acerca dos portugueses (alguns bem merecidos, outros nem tanto), mas centravam-se em dois pontos: na periclitante situação de Portugal numa Europa em guerra, e na figura do ditador que controlava o país.
Apesar de bastante laudatórios em relação a Salazar, a quem eram atribuídos grandes méritos e progressos (afastara o país de uma diabólica república que quase o destruíra, construíra obra, era casto, um pai para o país, e tolerava com benevolência a oposição), há neles uma repetida e constante referência à decadência e à extrema pobreza do país. A dada altura, na página 67, uma imagem (dotada de uma legenda que refere os progressos que o ditador alegadamente conseguira na educação básica) surpreende-nos.
A imagem afasta-se do tom geral da reportagem fotográfica, saí do campo do pitoresco e do cartaz turístico . Num primeiro plano, cinco crianças de sete anos, magras, andrajosas, quase todas descalças, lêem em coro a partir de livros decrépitos para um professor que pressentimos fora de campo.
A legenda diz com desinformado benefício que a maior parte das crianças encarava os sapatos como algo que se usa para ir à missa ao Domingo (desconhecendo provavelmente que parte da população rural e dos arrabaldes urbanos, sobretudo a infantil, pura e simplesmente não tinha sapatos).
Para um observador de século vinte e um, as crianças magras de cabeça rapada e a roupa puída remetem-nos para um universo tétrico que irromperia cinco anos mais tarde quando, na derrocada da Alemanha nazi, fotojornalistas entraram em campos de concentração. A associação é decerto incorrecta e injusta mas iconograficamente as imagens são próximas.

Bernard Hoffman, Meninos lendo numa aula,
Portugal, 1940
imagem obtida aqui


Bernard Hoffman, Meninos lendo numa aula (pormenor),
Portugal, 1940
imagem obtida aqui




Manuel Ferreira sorri-nos confiante a partir duns Estados Unidos onde, perto de um século antes, o pensador francês Tocqueville notara que a pobreza estava longe de ser considerada uma condição natural do ser humano, vendo até na obsessão pelo progresso material um dos problemas da democracia americana.
A pobreza real e a exploração laboral existentes na América eram contrabalançadas por uma ideologia social centrada no princípio da igualdade e na possibilidade (muitas vezes, apenas teórica) de ascensão social e material. O Portugal que, vinte e quatro anos  depois da fotografia de Lewis Hine, Bernard Hoffman capta é ainda um país de certa forma ancorado no velho regime, socialmente dividido em categorias muito estanques, e em que aristocracia tradicional fora parcialmente substituída no mesmo domínio rigoroso da propriedade e do poder por uma burguesia muito conservadora, com idêntica aversão à mudança e à concorrência.
O Estado Novo que a Revista LIFE elogia pela sua estabilidade (a conflituosidade social e a instabilidade política da república haviam tornado, aos olhos internacionais, o país num caso digno de estudo) é um essencialmente um sistema politicamente tradicionalista, autoritário, imobilista, parcialmente beato.
A pobreza que era considerada natural e louvada na retórica pública como sinónimo de felicidade e honra, era estruturalmente necessária a uma economia que evitava a mecanização e assentava numa mão-de-obra miserável. Toda a reivindicação sindical era evitada e reprimida, e a representação laboral era um simulacro corporizado em sindicatos oficiais controlados pelo Estado. A imigração era contrariada, ao contrário dos tempos da primeira República, precisamente pelo risco de exaurir o fornecimento de trabalho barato, vital ao modelo económico.
Em 1916, Manuel Ferreira tinha provavelmente mais razões para sorrir na sua condição de trabalhador fabril adolescente em Fall River, do que os miúdos descalços que escapavam ao analfabetismo geral de 1940, para aprender alguma aritmética e muita religião (palavras da LIFE), num país que, em paz, garantia à maioria dos seus cidadãos uma existência meramente ao nível da subsistência. Uma existência que seria apenas comparável à de uma Europa destruída pela guerra, no curto período entre 1945 e a implementação do plano Marshall.

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