segunda-feira, 3 de junho de 2013

A guerra dos significados

Há setenta e três anos, numa Europa em guerra, deu-se um importante acontecimento. O rápido avanço das tropas nazis cercou o contingente expedicionário britânico, e boa parte das tropas locais, no litoral do Norte de França.
Incapazes de reagir, de retomar a iniciativa, com tropas exaustas e sem meios, os britânicos decidiram-se pela retirada. Uma retirada improvisada, atabalhoada, em que tudo serviu para retirar gente da ratoeira que a região de Dunquerque se tornara. Mas, apesar de tudo, uma retirada feita com estoicismo, em que se lutou para não deixar ninguém para trás (ninguém que se conseguisse deslocar para as praias). Retirados os britânicos, foram também transportados os seus aliados: franceses, belgas, holandeses e até polacos.

O sucesso da retirada serviu para algo estranho, mas não inusitado. Converter uma tremenda derrota numa vitória. As guerras reais travam-se não apenas nos campos de batalha, mas também ao nível dos significados.

O ter sido capaz de retirar milhares de homens acossados em poucos quilómetros de praia, em poucos dias, recorrendo a qualquer coisa que flutuasse, de navios mercantes a iates de recreio, de barcos de pesca a couraçados, serviu para o comando britânico apresentar ali a marca da sua vitória. Dunquerque seria a prova do carácter e resolução britânicos.

E porque as imagens não são neutras, também elas foram convocadas para esta alquimia de transmutação de derrotas em vitórias.

Autor não identificado,
Soldados do British Royal Ulster Rifles 
a serem retirados de Dunquerque,
3 de Junho de 1940
imagem obtida aqui




Tropecei hoje nesta imagem da edição online do jornal inglês The Guardian.
Nela tudo se adequa ao discurso que foi construído acerca dos eventos de 1940. Nela nada se destaca em particular, nenhum soldado sobressaí. é uma imagem de um colectivo indefinido. Um colectivo que funciona sem pânicos, em condições muito adversas. A rugosidade da imagem faz adivinhar dificuldades, o tempo que era desagradável, o cansaço, a sujidade, a dureza. A História faz-nos saber que foram bem sucedidos estes homens. Cercados por uma força superior, souberam resistir, aguardar pela sua vez.

Mas as guerras têm dois lados (pelo menos). Uns dias depois, pelas praias da região de Dunquerque andou um alemão, Hugo Jaeger, que também fotografou a sua versão dos acontecimentos.

Hugo Jaeger, Praia perto de Dunquerque,
Junho de 1940, pormenor
imagem obtida aqui


A praia registada por Jaeger não é a praia dos heróis, dos que resistiram e dos que os vieram buscar, é a praia da derrota. Uma praia de veraneantes devolvida à normalidade pelas forças alemãs (vejam a senhora, que placidamente se senta na areia), e em que são ainda visíveis os traços de um fuga improvisada. É um território  pleno de despojos, de material deixado para trás. Uma praia vasculhada por cães, iconografia macabra dos derrotados em campos de batalha. 
A imagem de Jaeger é a imagem da humilhação britânica e francesa que enchia os peitos de Hitler e dos seus. E Hugo Jaeger era um deles, foi um dos poucos homens que tiveram a oportunidade de retratar a intimidade do ditador.

Hugo Jaeger, Praia perto de Dunquerque,
Junho de 1940, pormenor
imagem obtida aqui

As guerras de significados travam-se ao mesmo tempo das guerras de sangue, e a vitória nestas últimas determina normalmente a sorte das primeiras.
Hoje, a narrativa sobre Dunquerque que vingou é sem dúvida a que transparece na primeira imagem. Mas olhando para a praia de Jaeger podemos perceber que não era uma narrativa única. Existia o seu inverso, uma praia sem alquimias, sem redenções para um notório falhanço militar.

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