quarta-feira, 19 de junho de 2013

Um escândalo

Capa da LIFE de 16 Setembro de 1966

Em meados de Setembro de 1966, uma capa da revista americana LIFE, uma referência mundial no campo do fotojornalismo, causou escândalo. Nela aparecia a actriz italiana Sophia Loren, então no pico da sua popularidade, fotografada durante a rodagem do filme "Matrimonio all'italiana" ( Casamento à Italiana, na versão portuguesa; Matrimônio à Italiana, na versão brasileira) de Vittorio De Sica. A razão da polémica prendia-se com os traje envergados, que se resumiam a umas cuecas e a uma combinação particularmente transparente. Uns quantos leitores afirmaram o seu repúdio por tal exposição da beleza feminina e alguns assinantes chegaram mesmo a cancelar o seu contrato.

Hoje podemos olhar com alguma risibilidade para o acontecimento, desconfiando da pública afirmação de virtuoso desagrado e do impacto do cancelamento de assinaturas na saúde financeira da revista, que sobreviveria décadas a esta controvérsia, e reparar nalguns factos interessantes.
Um deles é que a notícia que motivava esta capa não era propriamente a actriz ou o seu trabalho, mas antes o fotógrafo. Alfred Eisenstaedt, nascido na Alemanha mas entretanto naturalizado americano, fazia parte da equipa da LIFE desde que esta se reformulara, nos anos trinta, no sentido de se tornar uma revista em que a imagem fotográfica era central. Por essa altura, Alfred apresentava a exposição "The face of our time" e era em sua honra que a imagem de Sophia Loren, feita três anos antes (e que não fora algo de publicação), era chamada à frente.
A escolha desta fotografia em particular, de entre tantas apresentadas na exposição, não era inocente e enquadrava-se um pouco na linha editorial da revista, que várias outras vezes recorrera à sensualidade de vedetas femininas na capa (fizera-o com Claudia Cardinale, dois meses antes) para cativar os leitores. A polémica não terá,  por isso, sido inesperada.

Quase quarenta e sete anos depois, algumas coisas mudaram. A LIFE deixou de existir como revista, mas o seu nome sobrevive na designação duma corporação empresarial de media americana, a Time Life, que continua a tirar proveito da fama e do espólio da extinta publicação. O site life.time.com é por ela mantido e, em associação com a Google, podemos aceder a parte do seu espantoso arquivo fotográfico. Podemos, por exemplo, ver algumas outras imagens da sessão, de 1963, em que Eisenstaedt captou a fotografia de capa, embora apenas a preto-e-branco e não na provável cor original.

Alfred Eisenstaedt, Sophia Loren, 1963,
imagem obtida aqui


Alfred Eisenstaedt, Sophia Loren, 1963,
imagem obtida aqui


Alfred Eisenstaedt, Sophia Loren, 1963,
imagem obtida aqui

Alfred Eisenstaedt, Sophia Loren, 1963,
imagem obtida aqui
Outra coisa que se alterou profundamente foi o star system, hoje muito mais fragmentado, por um lado, com poucas verdadeiras vedetas, e hegemonizado, por outro,  na medida em pouca figuras de origem não anglo-saxónica se conseguem erguer para um estatuto de reconhecimento mundial. E a própria substância das estrelas parece ser outra. O estatuto de celebridade não passa tanto por mérito e qualidades naturais, quanto por uma máquina de fazer celebridades. Ohando-se para Loren e para muitas das celebridades da era das modelos feitas actrizes, do silicone e do photoshop, olha-se para duas coisas radicalmente distintas. Na primeira, o fulgor da sua imagem era reflexo de uma força da natureza; nas outras, a imagem é a sua única força, e não advém da natureza.

E por último, a naturalidade captada na rodagem de um filme de enredo picante nos anos sessenta só pode fazer-nos sorrir perante a actual omnipresença de um exibicionismo boçal, de reality show, em que nada  verdadeiramente choca.
É caso para dizer que é uma pena, aliás, que é um verdadeiro escândalo que já não haja escândalos.

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