quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Os sítios obscuros

A Fotografia, que aparece como prática viável em meados do século dezanove, sem história própria e limitada tecnicamente, socorre-se  num primeiro momento, de modelos e temáticas que busca na artes maiores, sobretudo na pintura.
Praticavam-se muito o retrato, a paisagem e a natureza morta, e alguns mais afoitos abalançavam-se nos tableaux vivants, encenações de momentos históricos ou ficcionais com recurso a modelos. Buscavam-se composições equilibradas e pitorescas, almejava-se belas imagens.
Mas a natureza "mecânica" do processo fotográfico alargou os praticantes muito para além da franja dos dotados para as artes, e rapidamente o mundo das imagens se tornou mais "democrático", mais aberto e inesperado.
A Fotografia mostrou-se estranhamente capaz de se afastar das coisas belas e ideais, e de ser verdadeira.
Com ânsia documental, acercou-se dos sítios obscuros da sociedade e alma humanas.
Mesmo entre os seus praticantes mais eruditos aparecem divergências em relação à tradição pictórica.
Hugh Welch Diamond, um médico psiquiatra e fotógrafo, utilizando a técnica do calótipo, uma das primeiras vias de obtenção de imagem fotográfica, fez registos das feições dos seus doentes e da sua locomoção. O primeiro fotojornalismo, por acção de gente como Jacob Riis, também se dedicou à exposição dos excluídos e dos alienados. Mais tarde, esta temática acabaria por entrar no corpo central da fotografia mais autoral, mais "artística". Nomes como Diane Arbus comprovam-no.

Hugh Welch Diamond, Retrato de louca, 1852-54
imagem obtida aqui


Jacob August Riis, Residente idosa,
Esquadra de polícia de Eldridge Street,
Nova iorque, E.U.A., 1890
imagem obtida aqui


Diane Arbus, Homem com rolos de cabelo
Nova iorque, E.U.A. 1966
imagem obtida aqui



A par deste assalto mais informado ao lado marginal, há toda uma Fotografia mais vernacular que também a aborda. Fotógrafos comerciais que captam as figuras dos circos de aberrações e as fazem circular em postais e carte-de-visite, jornais sensacionalistas que seguem como rapaces as vítimas e os perpetradores de crimes, funcionários de esquadras e asilos que burocraticamente registam os seres da margem.

A maioria dessa Fotografia é desajeitada, tecnicamente medíocre. Mas alguma dela é surpreendentemente viva e competente, e atinge-nos com inesperada força.

O Justice & Police Museum de Sydney, na Austrália, alberga um fascinante arquivo de imagens forenses e de cadastro. Disponíveis online, com alguma informação escrita adicional, é facil perdermo-nos durante horas a vasculhar o submundo australiano de início do século vinte, numa viagem pelas  estranhas e dramáticas histórias pessoais que conseguimos intuir nestas fotografias.

Um exemplo:
Um tal  Harry Leo Crawford  aparece em três fotografias. De origem escocesa, casado em segundas núpcias com Elizabeth King Allison, funcionário de um hotel, aparentemente um cidadão dentro da normalidade, é preso em 1920, por suspeita do assassínio da primeira mulher.

autor desconhecido, Eugenia Falleni alias Harry Crawford, 
Sydney, Austrália,início de 1920
imagem obtida aqui


Sete anos antes casara com a viúva Annie Birkett, uma empregada da residência do Dr. G. Clark , em Sydney, de quem era então motorista. Após quatro anos de matrimónio, Annie Birkett desapareceu e Harry informou os vizinhos de que havia fugido com um canalizador.


Em 1919, Harry casou novamente indicando no registo a condição de solteiro. Nesse mesmo ano, denúncias de familiares da sua primeira mulher levam a que a polícia investigue o desaparecimento. Finalmente, um corpo ,encontrado desfigurado em 1917, é exumado e identificado como o cadáver de Annie Birkett, e a 5 de julho de 1920, Harry foi detido.

Mas esta história real  de intriga policial esconde uma torção existencial e de identidade.
O escocês Harry Leo Crawford era a italiana Eugenia Falleni.

Nos arquivos do Justice &Police Museum são disponibilizadas três fotografias. A primeira (acima), encontrava-se  numa capa de papel com a inscrição  "Falleni Man/Woman" ( Falleni Homem/Mulher), apresenta-nos o suspeito em roupas de homem, na esquadra central de Sydney, provavelmente em 5 de Julho de 1920, o dia da sua detenção.

A segunda, feita no final desse ano, em 21 de Outubro, já é uma imagem da penitenciária feminina onde cumpriria a pena, e Harry/Eugenia já aparece vestido de acordo com o seu género biológico.

autor desconhecido, Eugenia Falleni alias Harry Crawford
Sydney, Austrália, 21 de Outubro de 1920
imagem obtida aqui


A terceira, também uma imagem de cadastro da mesma penitenciária, feita oito anos depois, confirma-nos uma Eugenia Falleni em roupagens femininas.

autor desconhecido, Eugenia Falleni alias Harry Crawford,
Sydney, Austrália, 1928
imagem obtida aqui


Abstendo-me de falar mais da história desta personagem, duma vida plena de potencial romanesco, que desafio os leitores a investigar, concentro-me no que está patente nas fotografias.

São três imagens sem grandes ambições. Fotografias de identificação. A inicial apresenta-nos Falleni na sua falsa identidade. As duas seguintes mostram-nos a sua verdadeira identidade, a que a biologia lhe impôs e a que a lei a forçou a aceitar.

Mas as imagens contam-nos uma história diferente. Olhando-se a linguagem corporal, a sensação que se tem é que a personagem travestida é a que consta das fotos da penitenciária,e não a da esquadra. Eugenia é muito mais natural e segura enquanto suspeito Harry Leo Crawford , do que enquanto condenada Eugenia Falleni.

autor desconhecido, 
Eugenia Falleni alias Harry Crawford (pormenor), 
Sydney, Austrália,início de 1920
imagem obtida aqui


autor desconhecido, 
Eugenia Falleni alias Harry Crawford (pormenor), 
Sydney, Austrália,início de 1920
imagem obtida aqui

autor desconhecido,
Eugenia Falleni alias Harry Crawford (pormenor),
Sydney, Austrália, 1928
imagem obtida aqui



Estas imagem falam-nos de identificação e identidade. E de como estes conceitos não são sempre avenidas cristalinas, funcionais e desimpedidas. São, por vezes, sítios obscuros, retorcidos, misteriosos.


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terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

O não-retrato pessoal de Andy Warhol

Henry Cartier-Bresson terá dito que não gostava de retratar actores e actrizes. A relação profissional que têm com a sua própria imagem faz com que a presença de câmaras os transforme numa pose, considerava ele.

Em poucos casos, esta dificuldade de separar a personalidade da imagem, terá sido mais evidente que no do artista plástico Andy Warhol. Este, figura de proa do movimento Pop Art, é um exemplo único de opacidade. Todas as suas aparições públicas eram momentos de demonstração. O homem era a sua imagem. O seu rosto era uma máscara de cera inexpressiva, imagem pura, sem aparente significado.
Dificilmente se poderia contornar este exercício, vislumbrar um pouco da intimidade, da sua verdade, através do rosto.

Richard Avedon, Andy Warhol,
Nova Iorque, 20 de Agosto de 1969
imagem obtida aqui


Uma das formas de garantir anonimato numa fotografia passa por evitar o rosto. É um recurso comum no manual de artíficios dos fotógrafos. Os amadores que tentam o nu, com modelos relutantes à exposição pública, fazem-no. Os fotógrafos mais ambiciosos, quando tentam a abstração partindo dum corpo  individual, também vão por aí.

Curiosamente, um dos olhares fotográficos mais certeiros sobre Andy Warhol serve-se desta abordagem.
Em Agosto de 1969, Richard Avedon fez algumas fotografia com o artista, então recuperado de uma tentativa de assassínio. Pouco mais de um ano antes, Valerie Solanas, uma aspirante a actriz e dramaturga, desequilibrada social e psiquiatricamente, que tentara entrar no círculo próximo de Warhol, e despeitada pela pouca atenção que considerava obter, disparara sobre ele.
Gravemente ferido, fora submetido a uma operação complexa na qual, inclusivamente, o recuperaram de uma paragem cardíaca. Andy warhol sobreviveria, mas do acontecimento ficariam marcas físicas, um torso retalhado por cicatrizes e a necessidade de usar um corpete ortopédico, e marcas psicológicas. Warhol nunca lidara bem com a dor física e o episódio viria a marcá-lo profundamente, acentuando a aversão irracional que tinha por hospitais e médicos. O artista faleceria prematuramente em 1987, na sequência de uma operação dita de rotina à vesicula biliar, que adiara ao ponto de a tornar uma emergência médica.

O tronco sem rosto de Warhol, um não-retrato, que Avedon fotografa no Verão de 1969, acaba por ser uma muito mais fidedigna, e pessoal, imagem dos seus demónios interiores do que os muitos registos da face icónica que oferecia às câmaras

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quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Da Fotografia e das cebolas

Há uma metáfora estafada, gasta de tanto uso, que associa qualquer coisa complexa a uma cebola. O Complexo tem camadas, por baixo dum primeiro nível há outro, e abaixo deste um outro ainda. Ora, quem tem a amabilidade (e a paciência) de aqui acompanhar os textos, sabe decerto do meu gosto por lugares-comuns, e assim não estranhará que eu diga que algumas fotografias são assemelhadas a uma... exacto,a uma cebola.

Charles Lutwidge Dodgson,
A lição de anatomia com o dr George Rolleston
Oxford, 1857
imagem obtida aqui

Escolho para demonstrar uma imagem de Charles Dodgson, uma daquelas imagens que me enchem as medidas, e começo a disparar.

Primeiro tiro: como a casca seca da cebola, a imagem alcança-nos através da sua superfície, pela forma. 
Composição equilibrada e clássica, figuras humanas organizadas num triângulo  segundo um eixo de quase simetria.

Segundo tiro: Abaixo da forma, nova camada, mais polposa- a iconografia. A cena retrata uma aula de anatomia, uma temática que entrara na pintura ocidental na esteira do Renascimento (todos têm, certamente, em mente a fabulosa "Lição de anatomia do dr. Nicolaes Tulp" de Rembrandt). A Fotografia, nos seus anos iniciais, procurou amiúde o amparo da Pintura na sua ânsia de validação cultural e aqui, Charles Dodgson, juntando oportunidade e conhecimento, cruza citação, encenação e documento.

Terceiro tiro: caminhando para o interior nova camada, mais suculenta. A da inserção da imagem num corpus de obras e na biografia do autor. Charles Dodgson era o verdadeiro nome de Lewis Carroll, o autor de "Alice no país da maravilhas". Antes de ser ser um escritor popular e próspero, Dodgson foi um interessante e original fotógrafo, e um promissor matemático que ensinava em Oxford. Nesses anos de busca de notoriedade, o jovem inglês encontrava-se na base da estrutura social académica e procurou estender as suas redes de conhecimentos. A Fotografia, à altura um hobbie difícil mas considerado recomendável num gentleman culto, garantia-lhe a admiração, a disponibilidade e o acesso à elite cultural e científica da Inglaterra vitoriana.
Muitos anos mais tarde, após a sua morte, a família alimentaria um culto centrado na sua alegada excentricidade, difundindo a imagem de um homem profundamente tímido, avesso a contactos sociais, que apenas se sentia bem na companhia de crianças, especialmente meninas. A fotografia de "A lição de anatomia com o dr George Rolleston", trabalho dos seus anos iniciais, ajuda a desmistificar a personagem caricatural, criteriosamente tecida aos longo de anos, que transformara o autor em algo muito próximo das personagem invulgares dos seus livros de ficção. Dodgson não só tinha contactos sociais regulares, como era particularmente activo na sua aproximação às mais notórias figuras da época.
Nas suas fotografias dos primeiros tempos, Dodgson é um homem à procura de dominar a técnica e de encontrar uma temática. A própria Fotografia encontrava-se na sua infância, e ele escorou-se, como muitos seus contemporâneos, na tradição pictórica, tentando vários géneros, como o retrato, a natureza-morta e a paisagem. Mas a sua pertença ao círculo de Oxford permitiu-lhe a originalidade de fazer algumas naturezas-mortas com espécimenes científicos do Museu de Ciências, e organizar com estes (e com alguns conhecidos), algumas estranhas imagens (como a presente) associando pessoas a ossadas e esqueletos, num universo em podemos sem grande esforço ver ligações com a sua futura obra, escrita e fotográfica, onde há jogos de associações, de estranhezas e de absurdos.

Quarto tiro: Atinge-se o cerne, a parte mais plena de sabor. Chegamos à componente especulativa.
Esta fotografia de Dodgson data de 1857. A sua lição de anatomia não é uma qualquer, trata-se de uma aula de anatomia comparativa. Relaciona-se um crânio com um esqueleto animal. Estes dois factos não isentos de relevância e de possibilidades.
À data estava-se num período de efervescência nas ciências naturais. Dois anos depois, dar-se-ia um acontecimento radical e fundador. Charles Darwin publicaria "A origem das espécies", formulando a sua teoria da evolução, e estalaria uma enorme controvérsia, a partir da qual, o ponto de vista cientifico ficaria marcado de forma indelével.
Mas a divulgação da teoria não foi uma verdadeira surpresa. Na realidade, a revolução de Darwin estava há muito anunciada e aguardava o seu momento. Desde que voltara da sua viagem de investigação à América do Sul, no navio Beagle, mais de vinte anos antes, o naturista vinha cautelosamente colhendo, compilando e organizando dados que lhe permitissem provar o que intuíra na expedição : que as espécies não eram estáveis, resultando de um acto de criação, mas que evoluiriam ao longo de espaços de tempo alargados, de acordo com um processo de selecção natural.
Ao longo dos anos fora compartilhando, com grande resguardo, as suas ideias com um grupo restrito de cientistas, e fora intuindo quais os grupos acolheriam as suas dissertações e o defenderiam, e quais os grupos que se agarrariam à ortodoxia dogmática e antropocêntrica, e lhe fariam uma guerra sem quartel.
Entre os apoiantes encontrar-se-iam cientistas de grande reconhecimento como Charles Lyell e Joseph Dalton Hooker, e um botânico, inicialmente relutante, chamado Thomas Henry Huxley, que se tornaria no mais aguerrido e público defensor de Darwin (já que este, por motivos de saúde, não conseguiria ser o paladino da sua própria obra). Do outro lado da barricada, encontrar-se-ia a ala mais conservadora da sociedade britânica, em particular da hierarquia religiosa anglicana (representada no momento mais alto da polémica por Samuel Wilberforce, o bispo de Oxford), mas também uma parte significativa da comunidade académica, liderada pela grande figura das ciências britânicas, Richard Owen.
Este último, com quem em tempos Darwin colaborara, tornara-se de facto o grande opositor de Darwin, pelo peso do seu reconhecimento público e científico, e pela sua agilidade política. Parte de seu trabalho parecia validar a visão de Darwin ( anatomicamente, provara que os seres humanos são primatas), no entanto, pareceu incapaz de arriscar a sua influência ( que chegava até à família real) num separação clara entre a tradição, teologicamente enquadrada, e o conhecimento científico. Optaria por uma oposição virulenta, fortemente pessoal,  a Darwin e aos seus apoiantes.
Nesta guerra entre Evolução e Criação, travava-se igualmente uma guerra entre duas visões, a de uma profissionalização dos cientistas e do ensino das ciências, de que o já referido Huxley era o chefe de fila, e uma outra que pretendia manter a tutela dos clérigos sobre o ensino e a preponderância dos aristocratas amadores entre os investigadores britânicos, onde se situava Owen.
Voltando à imagem, quem ministra a aula de anatomia é George Rolleston, um dos protegidos de Thomas Henry Huxley, com quem participaria na defesa das teorias de Darwin. Ocuparia, no ano seguinte ao da publicação de "A Origem das Espécies", o cargo de Professor regente de Anatomia e Fisiologia na
Universidade de Oxford, derrotando um candidato apoiado por Owen. Por outro lado, o fotógrafo, Charles dodgson, é um pouco convicto diácono anglicano, estatuto que terá atingido mais por obrigação do que por vocação, no decurso do seu cargo de professor de matemática no Christ College, em Oxford.
Quando a imagem é feita, em 1857,  Rolleston já estará decerto a par das especulações de Darwin e já será um defensor das suas ideias, que propagará em privado, e talvez nas suas aulas. A sua anatomia comparativa  poderá indicar-nos isso. Não é igualmente indiferente que Dodgson escolha retratar Rolleston nesse período. Outras fotografias suas, nessa altura, parecem indicar que Dodgson estava, também ele, a par da revolução em curso (ver Os esqueletos e o pássaro extinto), e qual o lado para onde iriam as suas simpatias.
Gosto de acreditar que esta imagem ilustra bem o momento de contagem de espingardas que se viveria então em Oxford, na antecâmara de uma batalha que definiria o futuro do conhecimento e das ciências.

Com isto, termino. Como disse à partida, algumas fotografias descascam-se como as cebolas.
Porém, essas fotografias normalmente não fazem chorar. Fazem-nos sorrir.

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terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Um mistério insignificante


Texto inicialmente publicado em A LENTE LENTA do OBVIOUS LOUNGE.

CA Mathew, Frying Pan Alley em direcção a Sandys Row,
Londres, 20 de Abril de 1912
imagem obtida aqui


Não se sabe porque CA Mathew, um obscuro fotógrafo que tinha estabelecimento em Brightlingsea, cidade costeira da região de Essex, na Grã-Bretanha, saiu da estação de caminho-de-ferro no bairro londrino de Spitalfields, num sábado de abril de 1912. Não se sabe porque começou a fotografar a eito as ruas, becos e cruzamentos locais, perturbando o Sabbath, no que era então uma zona predominantemente ocupada pela comunidade judaica.

A presença do fotógrafo deu nas vistas, e bandos de crianças vestidas com as suas roupas domingueiras (o sábado é o dia de descanso judaico) passaram a amontar-se numa primeira linha defronte da câmara de CA Mathew, enquanto os adultos curiosos se retinham e observavam a uma maior distância.
A Fotografia aproximava-se do seu centenário, mas não era uma ainda uma realidade quotidiana e banal na vida dos cidadãos do início da era Edwardiana.

As imagens que fez em Spitalfields mostram-nos uma faceta particularmente viva e movimentada daquela secção de Londres que estava longe de ter uma boa fama.
Situado no East End, habitado por uma comunidade fechada, dedicada a pequenos negócios, sobretudo alfaiatarias, o bairro ficava bem próximo de algumas das mais mal-afamadas ruas londrinas, como Dorset Street onde, mais de vinte anos antes, uma jovem chamada Mary Kell aparecera morta e horrivelmente mutilada, naquele que seria o primeiro crime conhecido de Jack, o estripador. Mas as imagens de CA Mathew, desmentem o imaginário de pobreza e sordidez que os britânicos insistem em atribuir ao East End dessa época.

Não se vislumbram roupas esfarrapadas, criaturas dickensianas grotescas ou vilões de Sherlock Holmes. Vê-se uma vibrante zona comercial com o seu tráfego de carretas e carroças, com ruas pejadas de crianças em dia de descanso, mães que acompanham filhos de tenra idade e homens que seguem nos seus afazeres. Mostram-nos um bairro movimentado que foi surpreendido por um fotógrafo que ostensivamente o decidiu fotografar. Um bairro que decidiu ostensivamente mostrar-se surpreendido ao fotógrafo.

CA Mathew, Bell Lane em direcção a Crispin Street,
Londres, 20 de Abril de 1912
imagem obtida aqui


CA Mathew, Crispin Street em direcção ao mercado de Spitalfields,
Londres, 20 de Abril de 1912
imagem obtida aqui


CA Mathew, Spital Square em direcção ao mercado,
Londres, 20 de Abril de 1912
imagem obtida aqui


CA Mathew, Brushfield Street em direcção a Christ Church,
Londres, 20 de Abril de 1912
imagem obtida aqui


CA Mathew, Artillery Lane em direcção a Artillery Passage,
Londres, 20 de Abril de 1912
imagem obtida aqui



CA Mathew, Middlesex Street em direcção a Bishopsgate,
Londres, 20 de Abril de 1912
imagem obtida aqui



CA Mathew, Sandys Row a partir de Artillery Lane,
Londres, 20 de Abril de 1912
imagem obtida aqui



CA Mathew, Widegate Street em direcção a Artillery Passage,
Londres, 20 de Abril de 1912
imagem obtida aqui





Como disse há pouco, nada se sabe dos motivos de CA Mathew, se terá agido em resposta a uma encomenda, se terá fotografado para passar o tempo em virtude dum atraso no comboio que o levaria a Brightlingsea.
Se os conhecêssemos, possivelmente não acrescentariam nada de particularmente importante. Este é um mistério insignificante, de cuja resolução não depende verdadeiramente nada.

Mas desse carácter enigmático advem grande parte do encantamento das imagens.
Socorro-me para explicar , como é da praxe entre os menos dotados de talento, de uma voz com autoridade. Italo Calvino, escritor italiano, dizia que, antes de saber ler, passava horas olhando para os quadradinhos dos fumetti americanos (bandas desenhadas), inventando a partir das imagens enredos e significados, que mudavam e se aprofundavam a cada nova passagem. Quando começou a ler, a experiência proporcionada pelas histórias aos quadradinhos tornou-se algo bem mais pobre, limitada como era pelos parâmetros introduzidos pelo texto dos autores.

O mesmo se passa, de certa forma, com a Fotografia. Como todas as criações artísticas, encerra na sua natureza um certo grau de polissemia.
As interpretações de uma obra podem variar consoante as experiências e os instrumentos de interpretação do observador. Quando demasiado vagos os elementos reconhecíveis, tenderá para o abstracto. Quando fortemente legendada, tenderá para o documental. Nas imagens de CA Mathew temos um feliz equilíbrio entre o vago e o identificável.

Estas imagens de que pouco sabemos, além da localização e da data, cativam-nos pelo vislumbre de um tempo que não vivemos e que não conhecemos verdadeiramente, mas que podemos situar. Ajudam ( sobretudo os londrinos) a ter uma percepção mais verdadeira de um bairro, mas não o catalogam.
Dão-nos o estranho prazer de olhar para uma Inglaterra chocada com o recente afundamento do Titanic ( a manchete do desastre aparece numa das fotografias), para os seus habitantes, sem nos dizer quem eram e o que fariam mais tarde. Das crianças que olhavam para a câmara sabemos que passariam por duas guerras mundiais e pelo fim dos impérios coloniais, mais nada.

Tudo o resto podemos imaginar. Como fazia Calvino, criança, com os seus fumetti.



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