sábado, 17 de outubro de 2015

Os alquimistas saltimbancos

Mathew Brady tomou a si a tarefa de registar a carnificina que foi a guerra civil americana, um conflito em que se pressentiu a desgraça inominável que seria a 1º Guerra Mundial.
Nos dois conflitos misturaram-se novas armas, que a indústria conseguia produzir em volumes espantosos, com tácticas e lideranças militares pré-industriais.

Mathew Brady e o seu trabalho eram também, de certa forma, uma mistura de antes e depois. A fotografia era, na década de sessenta de oitocentos, uma novidade tecnológica. O seu uso no registo de combates militares fora poucas vezes tentado antes. Havia, claro, na década anterior, o exemplo da Guerra da Crimeia, acompanhada pelo inglês Roger Fenton, e o esmagamento da revolta indiana, fotografado pelo italo-britânico Felix Beato, que também andara pelos campos de batalha da Crimeia. Mas, para além deles pouco mais.

As razões dessa escassez advinham do facto da Fotografia, uma técnica moderna, ser praticada em moldes pré-industriais. Nessas suas primeiras décadas, a fotografia implicava ser totalmente produzida pelos fotógrafos, que faziam não só as soluções químicas, como os suportes fotográficos, ou seja, as placas de vidros emulsionadas e o papel fotográfico. Com a agravante da técnica então mais viável, o colódio húmido, implicar que, entre a produção do suporte em vidro, a captura da imagem e o seu processamento, não pudessem passar mais que uns minutos.
A imagem dum fotógrafo de guerra em 1864, como Brady e os seus associados, não era nada parecida com o estereótipo do corajoso e saltitante herói que, com uma ou várias câmaras, gravita em torno da acção, registando-a nos seus momentos decisivos. Era muito mais a dum alquimista saltimbanco de carroça, carregado e lento, que chegava aos campos depois da matança, fotografando os efeitos da destruição.

Era, passe a distorção,  um equivalente moderno dos oportunistas medievais que vasculhavam os mesmos cenários, recolhendo o que podiam dos despojos e dos mortos.


Mathew Brady,
Fotógrafos e carruagem,
E.U.A.,1864
imagem obtida aqui

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sexta-feira, 11 de setembro de 2015

O Bioco

O bioco, a incógnita indumentária das mulheres do povo da zona de Olhão, Portugal, foi comum até meados do século passado. Há registo de desagrado das autoridades e até de tentativas de repressão por , nos finais do século dezanove, o considerarem um anacrónico vestígio da dominação muçulmana do Algarve, propiciador, espante-se, de actos de libertinagem.
Mas  não foi a proibição de 1892, nem tampouco o assédio das autoridades, o porquê que o remeteu para os baús familiares e os museus. Esse trabalho tem ser atribuído verdadeiramente à evolução dos costumes e a uma relativa uniformização cultural da sociedade portuguesa, no terceiro quartel de novecentos.

Artur Pastor, 
Mulher com bioco, 
Olhão, Portugal, 1943-1945
imagem obtida aqui

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sábado, 5 de setembro de 2015

Uma versão petrificada

O lago Natron é profundamente alcalino, com o PH da soda caústica. Mas não é imediatamente mortal, alguns (bastantes) seres vivos adaptaram-se e conseguem ali subsistir. Porém, aqueles que, doentes, enfraquecidos e moribundos, se deixam permanecer demasiado em seu contacto, transformam-se lentamente numa versão petrificada de si próprios.

Não é uma metáfora sobre certos países, mas podia ser...

Nick Brandt,
Flamingo petrificado reflectido,
Lago Natron, Tanzânia, 2010
imagem obtida aqui


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quinta-feira, 6 de agosto de 2015

O dia em que se sacudiu o pó dos dias

No dia 25 de Abril de 1974, Ana Hatherly, como muitos milhares de portugueses, ignorou as indicações para permanecer no recato do lar. Saiu à rua com um grupo de amigos e uma câmara fotográfica.
Quis ver as coisas no dia em que finalmente as coisas aconteciam.

E registou esse dia duma forma pessoal, paralela às grandes reportagens de Eduardo Gageiro, Alfredo Cunha e Carlos Gil. Ao contrário destes, não fotografou exactamente os instantes decisivos e os protagonistas centrais da acção.

O seu registo foi sobretudo o da vibração e o do pulsar das gentes que se apressavam, e juntavam, num momento em que as esperanças incertas sacudiam o pó do dias.


Ana Hatherly,
Sem título,
Lisboa, 25 de Abril de 1974
imagem obtida aqui

Ana Hatherly,
Sem título,
Lisboa, 25 de Abril de 1974
imagem obtida aqui


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quarta-feira, 15 de julho de 2015

Um planeta esquisito

Plutão sempre foi um planeta esquisito.
Longínquo, descoberto muito tardiamente, foi o planeta X até que uma menina de dez anos,  Venetia Burney, neta de Falconer Madan, um notável de Oxford,  teve a capacidade de o baptizar com o mitológico nome de Plutão, divindade grega que lidava com os mortos e a riqueza.
Durante dezenas de anos foi o nono planeta do nosso sistema solar, até que foi afastado desse panteão e entrou no limbo dos chamados planetas-anões.

Este anão, desqualificado, de órbita excêntrica, afastado,  foi sempre mais imaginado que visto. As suas melhores representações eram não fotografias, mas criações de ilustradores especializados. As fotos do planeta eram pouco mais que a miragem dum míope, dado que nenhuma sonda passara perto para o retratar com pormenor. A agência espacial americana, quando plutão ainda era membro do clube dos planetas, sentiu essa falha como algo a colmatar. Organizou o lançamento da New Horizons em Janeiro de 2006, apenas sete meses antes da  União Astronómica Internacional empurrar a pobre criatura celeste para a segunda divisão.
Fosse a Astronomia uma empresa cotada em bolsa e a missão teria ficado insolvente.

Mas felizmente não o é.
E agora Plutão tem direito a finalmente sorrir para o retrato. 
Ao fim de nove anos, a nave aproximou-se o suficiente para fazer uso da Long Range Reconnaissance Imager, a câmara fotográfica criada de propósito para a missão. As primeira imagens não são ainda as definitivas, já só ontem a sonda atingiu a proximidade máxima, e ainda levará um tempinho para revelar o detalhe.

Mas do que foi divulgado, podemos com certeza dizer o seguinte: Plutão continua esquisito. Citando John Spencer, do Southwest Research Institute do Colorado, uma das entidades envolvidas na missão "as imagens revelam apenas que Plutão é um planeta realmente esquisito. Tem algumas áreas muito escuras, outras extremamente claras, e não sabemos nada sobre o que são ainda".

NASA, Plutão, 2015
Imagem obtida aqui


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segunda-feira, 13 de julho de 2015

A arte de humilhar

Dificilmente se poderá considerar a humilhação como uma ferramenta produtiva da diplomacia. Mas, nem por isso, o seu exercício deixou de ser aplicado nas relações entre povos.

Em 1919, ao fim de seis meses dum armistício que finalmente fez parar a fábrica de morte criada pela primeira guerra mundial, as nações vencedoras (que haviam entrado para o conflito com a mesma inconsciência militarista que reinava no estado-maior alemão) forçam uma Alemanha que não tinha alternativas a um tratado desastroso. A humilhação é consumada em Versailles, na França, mas para muitos esse foi apenas o acto final dum processo que começara numa carruagem de caminho-de-ferro, em Novembro de 1918, em Compiègne, também na França, onde os negociadores alemães tiveram de aceitar tudo o que lhes foi posto sobre a mesa.

Em 1939, a monstruosidade gerada por um tratado impossível trouxe de novo os combates à Europa. A França, um dos anteriores vencedores,  com as suas tropas trucidadas pelo moderno exército alemão, é desta feita submetida à humilhação. Em junho de 1940, os nazis recuperam a carruagem privada do marechal Foch, a tal de Compiègne, e impõem nela os seus termos a um inimigo sem alternativas. Dividem o país, retiram-lhe efectivamente a independência, e impõe-lhe o saque dos recursos.

Depois, a carruagem foi levada para Berlim para ser um monumento da vitória.

Fechava-se o círculo de humilhação e castigo colectivo, terá pensado a liderança alemã.

Nada estaria mais longe da verdade.

Hugo Jaeger,
O dia anterior à assinatura do armistício,
Compiègne, França, 21 de Junho de 1940
imagem obtida aqui

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domingo, 5 de julho de 2015

Na companhia do diabo

A imagem abaixo apresenta-nos um momento pitoresco dum conflito invulgar no interior da segunda guerra mundial, no qual a Finlândia se aliou ao diabo para combater o diabo.
Primeiro invadida pela União soviética em 1939, na chamada Guerra de Inverno, quando esta concordava com a Alemanha de Hitler a divisão da Europa, resistiu sozinha a forças numericamente muito superiores, sem que as forças aliadas concretizassem os apoios que prometiam. Acabou empurrada pelos alemães, e pelas circunstâncias, para um armistício com os invasores, que lhe custaria um décimo do território e que pouco duraria.
Mais tarde, em 1941, quando os nazis romperam o pacto com os soviéticos, os finlandeses fizeram uma aliança pouco convicta com os primeiros, para obter os apoios que precisavam para recuperar os territórios perdidos.
Em 1944, com todo o território finlandês recuperado e com a Alemanha em clara perda, a Finlândia acordou separadamente a paz com Estaline, e entrou em guerra com o aliado de circunstância, forçando as forças alemãs a retirar do seu território para a Noruega.

Autor não identificado,
Vigilância em torre de controle aéreo, 
Finlândia, 1942
imagem obtida aqui

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quarta-feira, 27 de maio de 2015

Mary Ellen Mark - Obituário


Faleceu aos setenta e cinco anos, em Nova Iorque, na passada segunda-feira, a fotógrafa Mary Ellen Mark.

Tendo começado como fotojornalista, Mark foi sempre detentora duma abordagem muito pessoal da Fotografia, tendo afirmado que, nesses anos em que trabalhou para publicações como a revista LIFE, o New York Times Magazine, a The New Yorker ou a Vanity Fair, encarou as histórias que lhe eram atribuídas como uma forma de desenvolver a sua abordagem artística particular, num olhar humanista e empático com os sujeitos do seu trabalho, frequentemente criaturas à margem da sociedade- os excluídos, os alienados, os estranhos.


Mary Ellen Mark,
Auto-retrato,
sem data
imagem obtida aqui


Mary Ellen Mark,
Os irmãos Tulsi e Basant com o  o seu cachorro,
Calcutá, Índia, 1991
imagem obtida aqui



Mary Ellen Mark,
Cayla e Mylee Simmermon,
E.U.A.,  2001
imagem obtida aqui
Mary Ellen Mark,
A família Damm Family no seu carro,
Los Angeles,  EUA, 1987
imagem obtida aqui

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terça-feira, 26 de maio de 2015

Olivia Locher combateu a Lei

Olivia Locher criou na sua série "I fought the Law", homónima duma famosa gravação da banda inglesa the clash, um conjunto de imagens que ilustram algumas das mais absurdas leis dos Estados Unidos. E apesar duma aparente polidez e artificialidade pop, há nelas um sentido de humor que se revela tão cáustico quanto a fúria acelerada da música e do imaginário punk.

Leia mais aqui.

Alabama, da série "I fought the Law",
E.U.A., 2013
imagem obtida aqui

Kansas, da série "I fought the Law",
E.U.A., 2013
imagem obtida aqui

Arizona, da série "I fought the Law",
E.U.A., 2013
imagem obtida aqui

Georgia, da série "I fought the Law",
E.U.A., 2013
imagem obtida aqui

Kentucky, da série "I fought the Law",
E.U.A., 2013
imagem obtida aqui

Utah, da série "I fought the Law",
E.U.A., 2013
imagem obtida aqui



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sábado, 28 de fevereiro de 2015

O alienígena com sentido de humor

Leonard Nimoy faleceu ontem.
Exemplo dum fenómeno comum, Nimoy era um actor que ficou para sempre identificado com uma personagem que desempenhou - o Mr. Spock da série "Star Trek" ( O caminho das estrelas). Mas, ao contrário da figura que incarnou, não era um alienígena solitário sem sentido de humor. Tinha bastante sentido de humor.
E talentos variados. Na fase final da vida dedicou-se em particular à Fotografia. E não desempenhou aí a personagem "parola" da celebridade que tem mania que tem "jeito" para a fotografia.
Tinha mesmo algumas ideias respeitáveis sobre a coisa.

Leonard Nimoy,
Auto-retrato com lâmpada,
E.U.A., 2003
imagem obtida aqui
Leonard Nimoy,
Sexteto,
E.U.A., 2002
imagem obtida aqui


Leonard Nimoy,
Homenagem a Matisse,
E.U.A., 2005
imagem obtida aqui

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quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Uma boa história

De uma maneira geral, todos gostamos duma boa história.
O fotógrafo Jim Herrington, definitivamente, gosta de boas, de excelentes histórias. Em 2006, quando se deparou com um artigo de imprensa que informava que Cheeta, o chimpanzé dos filmes do Tarzan protagonizados por Johnny Weismuller, se encontrava ainda vivo, achou que era uma história boa demais para deixar escapar. Mas a coisa era melhor ainda.
Com 76 anos, Cheeta era o chimpanzé mais velho conhecido, com direito a entrada no Guiness book of records, tendo atingido quase o dobro da idade expectável num destes símios.  Além disso, como outras estrelas das décadas de trinta e quarenta, o velhote não era uma figura bem comportada. Tinha mau feitio, fumava charutos e gostava de bebida, cerveja sobretudo. Cheeta não era uma estrela politicamente correta, era um daqueles velhotes desbocados e malandrecos, um dos do "ratpack", um filho da Grande Depressão que gostava de fazer o que lhe dava na veneta.

O vetusto chimpanzé estava então a cargo de Dan Westfall, um sobrinho do dono e tratador original, Tony Gentry, que o orientara nos filmes do Tarzan. Contactado Dan, foi acordada uma sessão fotográfica na vivenda de Palm springs, na Califórnia, onde ambos viviam. Lá chegado, Jim Herrington foi levado até junto da piscina, e avisado que, caso Cheeta tivesse um súbito ataque de violência, não deveria pensar duas vezes. O melhor era que saltasse logo para a água. Apesar de idoso, era ainda um potente chimpanzé macho.

Mas nada de mau ocorreu. Cheeta portou-se como uma vedeta reformada que gosta de novas atenções. Deixou-se retratar calmamente na espreguiçadeira da piscina, numa sessão que correu bem, muito bem.

Jim Herrington,
Chimpanzé sentado junto a piscina,
Palm Springs, Califórnia, EUA, 2006
imagem obtida aqui
As imagens foram publicadas, tudo correu bem. Mas dois anos depois, Herrington veio a saber através duma investigação de R.D. Rosen, um escritor que fora contactado para escrever a "biografia oficial" de Cheeta, que afinal tudo não passava dum embuste. Na sua pesquisa para o livro, Rosen descobrira que não houvera um Cheeta, mas sim vários chimpanzés que desempenhavam esse papel, cada um treinado para um tipo de cenas por Tony Gentry. Descobrira ainda que o chimpanzé apresentado a Jim Herrington não tinha mais que quarenta anos, que não era nem nascido quando o mais recente dos filmes de Tarzan fora filmado. Por fim, Dan Westfall não era sobrinho de Gentry, mas sim um primo afastado.

Não era claro o que levara Westfall a montar esta farsa. Não tirara, aparentemente, proveito material dela. Talvez tivesse sido apenas uma pequena mentira que, por falta de coragem, ganhou proporções inesperadas,

Jim Herrington afirma-se desapontado com o que veio a saber através Rosen. Não tanto pelo tempo que perdeu, e pelo dinheiro que gastou a seguir informações erradas, mas sobretudo porque perdeu uma história fantástica.


De uma maneira geral, todos gostamos duma boa história. Muito mais do que duma verdade fraquinha.

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domingo, 15 de fevereiro de 2015

A fadiga e o caos, de Eric Bouvet

Eric Bouvet,
Sem título, da série "Heroes from Maidan",
Kiev, Ucrânia, Fevereiro de 2014
imagem obtida aqui

O fotojornalista francês Eric Bouvet captou, nos embates ucranianos de há um ano, na Praça da Independência de Kiev, um conjunto impressionante de imagens que nos dá muito mais do que um simples registo dos instantes decisivos.

Leia o texto completo aqui.


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quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

A resposta

Certas imagens têm a espantosa capacidade de conter a resposta para perguntas que ainda não fizemos...

Alexander Zemlianichenko,
As roupas espaciais do cosmonauta Anatoly Ivanishin
num estendal a secar,
Rússia, 2014
imagem obtida aqui

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segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

As cores de Nova Iorque [2]

Ernst Haas,
Pintor de painéis publicitários,
Nova Iorque, E.U.A., 1952
imagem obtida aqui

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domingo, 18 de janeiro de 2015

As cores de Nova Iorque

Ernst Haas, um austríaco que escapou à incorporação no exército nazi por ter origens raciais "duvidosas", notabilizou-se primeiro por fotografias pungentes do pós-guerra, com o retorno de prisioneiros de guerra para uma Áustria destroçada ( ver O retorno). Convidado a juntar-se à Agência Magnum, acabaria por se mudar para os Estados Unidos, onde obteria mais tarde a naturalização.
E é aí que, nos anos cinquenta, afastando-se duma linguagem propriamente foto-jornalística, assente na cobertura de acontecimentos, começa a trabalhar com cor, uma técnica muito negligenciada pelos profissionais, que a consideravam limitada e mais orientada para os amadores.
Juntamente com Saul Leiter, Haas ajudou a resgatar a fotografia a cores desse menosprezo, e as imagens de ambos duma Nova Iorque a cores, de instantes insignificantes, de névoas e reflexos, muitas vezes experimentais e quase abstractas, são consideradas fundadoras.

Esta imagem, com múltiplas exposições, é tardia mas é simultaneamente representativa desta faceta de Ernst Haas.

Ernst Haas,
As luzes de Nova Iorque,
E.U.A., 1970
imagem obtida aqui
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